Sunday, November 13, 2011

As esganadas – Jô Soares

Sobre o quê: Gordas são esganadas. Essa frase de duplo sentido é o tema desse suspense. No Rio dos anos 30, um delegado carioca tem a ajuda de um delegado português ( e gordo) para desvendar o assassinato de gordas que morrem sempre depois de terem sido empanturradas com iguarias lusitanas.

Crítica
: É claro que não estou aqui pra dizer que o Jô Soares é engraçado. Mas posso dizer que tinha esquecido o quanto o Jô Soares é engraçado.
Em algumas partes do livro dá pra visualizar o próprio Jô travestido num dos hilários personagens, como uma das vítimas gordas ou o delegado português que vem auxiliar o delegado carioca. É como se a gente estivesse lendo um script do saudoso “ Viva o gordo”.

Porém tem um porém, nem tudo são risadas. Talvez querendo repetir o brilhantismo do Xangô de Baker Street, o autor faz várias e e cansativas viagens a momentos políticos e artísticos do final dos anos 30 e início dos 40. Acontece que no livro anterior do Jô, a história real completava a história da ficção, uma se misturava com a outra e viravam uma realidade nova e indivisível, uma realidade que era a própria ficção do livro.

Na história das Gordas é diferente. O suspense não é melhor nem pior, mas ele se basta. Não precisa nos remeter à segunda guerra mundial. A ambientação no Rio antigo, a caprichosa descrição das ruas do centro é mais do que suficiente pra preencher o pouco espaço de que as gordas ainda poderiam necessitar pra brilhar.
O mistério das rechonchudas é ricamente substancioso em conteúdo. Altamente vitaminado em inteligência. Extremamente avantajado em criatividade. Numa história tão bem delineada, valia mais ter explorado a opulência da própria trama do que fazer remissões que mais parecem alegorias, falando de um passado que pouco tem a acrescentar.

Estamos diante de um caso onde um filho assassinou a própria mãe, por odiar sua gordura e suas receitas portuguesas que ele mesmo jamais teve permissão de provar. Um filho magro, amargurado, com uma doença rara que lhe tirou as impressões digitais. Um filho que herdou uma funerária chamada Esfige e usa o carro como balcão de doces para atrair suas vítimas: gordas parecidas com a mãe dele, que ele faz questão de empapuçar cruelmente antes de assassinar.

Com tudo isso como prato principal, pra que política? Isso não é gulodice, é desperdício. São coisas diferentes, porque com gulodice, a gente iria se fartar com mais detalhes mórbidos da fascinante trama das gordas, mas ir pra outro lado, desviando o assunto, é desperdiçar tanto o interesse do leitor quanto a capacidade do autor.

Cortando essas gordurinhas, o livro do Jô fica até mais magro do que deveria ser, mas continua sendo um excelente suspense.

Por isso mesmo, deixa os leitores famintos ou simplesmente gulosos da inteligência e do humor inigualáveis de Jô Soares.

Rapidamente devorada, a história nos traz de volta a condição de saudade desse gordo que devia escrever sempre, todo dia e o dia todo.Esse livro é um canapé. Ele só abre nosso apetite pra querer mais desse Jô tão delicioso. Uma viva às gordas e muitos beijos no gordo!

Gisela Cesario

Saturday, October 29, 2011

Kafka à beira mar- Haruki Murakami

Sobre o quê: Um menino de 15 anos que resolve fugir de casa simplesmente para ser livre. Um senhor que, depois de uma espécie de ataque nuclear, se tornou analfabeto, mas consegue se comunicar com gatos. Aparentemente paralelas, as duas história se encontram no infinito mágico criado por Murakami.

Crítica: Sei que preconceito é feio e errado, mas infelizmente isso não me torna menos preconceituosa. Tenho um pé atrás com tudo que é japonês, filme, livro, nem amendoim japonês eu curto. No entanto, um grande amigo meu que tem ótimo gosto me jurou de pés juntos que “Kafka à beira mar” era maravilhoso, ótimo e ainda teve uma palavrinha decisiva. Ele disse que era absurdo. Não resisto a um absurdo, nem a um livro de presente, por isso, sem abandonar minha desconfiança, resolvi ler o livro do Murakami.

Realmente absurdo é a palavra chave pra definir a história. E o engraçado é que quando você pensa, ah, era disso que ele estava falando quando usou o termo absurdo vem um absurdo maior ainda. Como assim? Bom, um menino de 15 anos ter um amigo imaginário chamado corvo é um pequeno absurdo se comparado ao fato de ter havido um tipo de ataque nuclear onde crianças ficam paralisadas e, minutos depois, voltam ao normal, todas menos uma. Isso também não é um grande absurdo quando se pensa que essa única criatura hoje em dia não sabe nem ler, refere-se a si mesmo na terceira pessoa (“Nakata não pensa direito..”), mas conversa com gatos e vive disso, pois ganha dinheiro encontrando gatos perdidos. E por mais que se imagine que a gente pode se acostumar com absurdos, isso é mentira, porque aqui cada absurdo tem o dom de surpreender o leitor e deixá-lo viciado, virando as páginas quase doentiamente em busca do próximo absurdo.

Muito embora seja recheado de maluquices, o livro de Murakami nada tem de ficção científica ou conto de fadas, nem parece com Jaspion. O mundo de “Kafka à beira mar” não confronta a realidade. Ele a recria. Tudo se torna possível e faz muito sentido. Nessa viagem fantástica do menino Kafka e do senhor Tanaka em busca de um sentido para vida, existe algo que desvenda os lugares mais secretos da alma humana, onde a realidade de cada um nada mais é que uma inconfessável verdade. Seja inconfessável porque absurda ou porque sonho ou porque indistinguível das loucuras do mundo real.

Kafka a beira mar só começa a fazer sentido quando o leitor deixa de procurar o sentido, quando, depois de ser açoitado por uma sequência de acontecimentos inacreditáveis, finalmente se entrega a um fato muito simples. A realidade não existe, portanto tudo pode ser normal ou absurdo. É exatamente quando as surpresas deixam de surpreender o leitor que ele percebe a grande e final surpresa do livro de Murakami, a de que ele, leitor, foi engolido pelo mundo louco ou absolutamente lúcido do livro.

Mundo esse que, de tão mágico, não te abandona na última página, mas diz baixinho no seu ouvido que vai estar sempre ali, pronto quando você quiser voltar porque se cansou desse mundo real, tão chato e tão absurdo.
Gisela Cesario

Wednesday, June 22, 2011

Nunca vai embora - Chico Mattoso

Sobre o quê: Um dentista cansado da sua rotina e apaixonado por sua namorada cineasta resolve atender a um pedido dela. Ir para Cuba explorar as possibilidades de um documentário. Mas a viagem se transforma numa busca incessante e totalmente inesperada.

Crítica:
Coincidentemente ou não ( e não foi por coincidência que eu comecei assim), antes de ler esse livro me surpreendi com um poema que eu não conhecia do Paulo Leminsky sobre o barro. É assim: “ O barro toma a forma que você quiser. Você mal sabe estar fazendo aquilo que o barro quer.” O verso me deu um baque, daqueles que fazem ler várias vezes e sacudir a cabeça para entender o lugar onde o texto te fez parar. No mundo dessa poesia de Leminsky, é o destino quem manda e pronto. A gente só pensa estar fazendo o que quer.

E foi assim que eu entrei numa livraria e agarrei “Nunca vai embora”. A primeira impressão foi que havia algo errado no título, como o livro parecia ser sobre um cara correndo atrás da mulher, imaginei que deveria ser nunca vá embora, mas resolvi comprar assim mesmo.

A história é mais uma daquelas em que o texto fala mais do que a própria história. A trama, basicamente, é um pretexto para que você conheça as paranóias do personagem, a sua visão do mundo.

O que acontece só é importante e fascinante porque acontece com ele , é a narrativa que transforma uma perseguição sob sol de Cuba na caça ao sentido da vida, tão comum a todos nós.

No livro do Mattoso, os fatos não ocorrem simplesmente, eles atropelam o nosso já tão confuso dentista, que, claro, passa por uma crise existencial daquelas que não passa nunca.

No meio da estadia, ou no pior da estadia, justamente no momento em que ele pensava em ir embora, ela faz isso primeiro. Desaparece da vida dele, ao mesmo que faz a vida dele aparecer pra ele. É só a partir disso, que Renato ( o nome do dentista) começa a se enxergar, é procurando Camila ( o nome da cineasta) que ele começa a ver o caminho escondido do seu destino.

No começo do livro, há um momento marcante em que ele compara a namorada a uma barreira, a qual impede que o mundo chegue até ele, o que ele percebe depois é que ele também não tinha acesso a esse mundo. Mas o que isso tem a ver com o barro e o destino e o Leminsky? Hein? Calma, vou explicar.

É preciso perceber primeiro que ele idolatra a namorada e parece ter medo que ela descubra o quanto ele é inferior e ela é incrível. Tentando descobrir o que ela teria visto nele, ele fala que a cumplicidade deles começou por causa dos comentários que ele fazia sobre o filme “Chinatown”, filme esse que deu origem a um outro chamado “Chave do Enigma”.

Eu tinha dito calma, não tinha? Então, vou chegar lá. Enquanto os dois discutiam esse último filme ele interpetra uma frase do personagem principal: “Nunca vai embora” é a frase. Pra ele, esse foi o momento que fez ela se apaixonar. A interpretação é a seguinte: nunca vai embora se refere “à resignação de um homem cansado de se debater contra uma força que é muito maior que qualquer um de seus dons”. Pronto. Cheguei no Leminsky. É a força do barro, do destino, daquilo que, mais do que qualquer vontade, obriga você a fazer o que ele quer e nunca vai embora, pelo menos enquanto você viver.

Não me espanta que a cineasta tenha amado um cara teoricamente sem graça por causa dessa frase. Ela, sem dúvida, me ajudou a amar o livro. E por isso também a história não importa muito, chega uma hora em que há muito mais descobertas a serem feitas do que o paradeiro da Camila. Descobrir o porquê de tudo, por exemplo. Descobrir por que eu escolhi esse livro, por que gostei e por que, depois de tanto tempo, me obriguei a escrever outra resenha.

Talvez escrever não seja propriamente um dom, mas seja uma força muito maior do que todos os dons de quem escreve. E no fundo, estou fazendo somente aquilo que o texto quer.
Gisela Cesario