Monday, October 07, 2013

O resto é silêncio - Carla Guelfebein


Sobre o quê: Filho de um cardiologista, Tommy é um menino de 12 anos, que já se sente diferente por ter problemas de coração. Quando descobre que sua mãe se suicidou, sua noção de estranhamento ganha novos contornos.  A partir disso, ele se aprofunda em seu próprio universo, aperfeiçoando o hábito de gravar conversas de adultos . E, da mesma forma que  mantém esse segredo, também sua família, formada pelo pai, a madrasta e a meia irmã, convive mais com o não-revelado do que com o que é dito.

Crítica: No creo en prioridades, pero que las hay, las hay. Não tenho a menor ideia por que comecei esse texto dizendo isso, mas imagino que é porque estou há meses para escrever essa resenha e estava quase indo pra outra quando pensei que seria muito injusto não registrar a excelência dessa obra.

Depois de examinar as orelhinhas do livro antes de comprá-lo, decidi que ia gostar de ler porque me identifico com pessoas esquisitas e solitárias, como o menino do livro, pensei que fosse só mais uma daquelas histórias cheias de reflexões, sobre como o mundo não é receptivo se você deixa de preencher os padrões da sociedade.

Porém, o livro de Carla é muito, mas muito mais que isso. Do início ao fim, o texto transborda sensibilidade, como se ele fosse uma daquelas drogas que surgiram nos anos 70 para aguçar os sentidos.

A percepção que nos é dada dos personagens ultrapassa o íntimo. Parece ser algo realmente lisérgico, e as palavras de Carla nos conduzem por brechas de onde é possível enxergar a alma de cada um deles.

O pai de Tommy faz de tudo para levar uma vida normal, mas não aceita o suicídio da esposa e ainda precisa enfrentar o fato de ter de tratar de crianças com a mesma patologia do seu filho, tornando impossível manter a distância profissional médico-paciente.

A madrasta, Alma (vejam como o nome é sugestivo), parece estar finalmente pisando em solo firme, tendo um casamento e um emprego, depois de toda uma vida cercada de aberrações, tendo de conviver com uma mãe que, de tão liberal, fazem os filhos desejarem ser caretas.

Até a pequena Lola, filha de Alma, demonstra esperteza e uma capacidade de compaixão no mínimo precoces, conseguindo, de certa forma, penetrar um pouco no hermético mundo de Tommy.

Com tudo isso, não estou querendo falar que você vai ficar dizendo “oh” e “ah” a cada página. “O resto é silêncio” te envolve de uma maneira hipnótica, fazendo com que o leitor vá se emaranhando num labirinto de onde, de repente, a gente percebe que não deseja mais sair.

Dá a sensação de que, quanto mais nos perdermos por esses caminhos estranhos, mais perto estaremos de nos encontrar, como se a busca do que te levou a ser o que você é pudesse finalmente te transformar no que você deveria ou queria ser. Doido, né?

Ao encontrar o fim desse labirinto (esse termo também faz parte da história), sentimos que estar perdido pode ter um significado muito mais amplo, um significado daquilo que não se diz em palavras, mas que cabe magistralmente no silêncio do título. O resto é tudo.


Gisela Cesario

Friday, July 12, 2013

Hanói- Adriana Lisboa

Sobre o  quê: Um cara com uma vida pouco interessante descobre que tem uma doença terminal e acaba entrando sem querer na vida de uma jovem mãe solteira. Os dois são descendentes de estrangeiros, vivendo em Chicago, e começam a descobrir que algumas desgraças podem ser boas coincidências.

Crítica: A vida não é justa. Por que? Não sei. Por que estou dizendo isso? Porque li mais de dez livros entre a última resenha e esta que escrevo agora, pelo menos a metade foi bem impressionante, Hanói não foi o melhor, nem o mais bem escrito, mas talvez tenha sido aquele com o qual eu mais me identifiquei, por isso é sobre ele que estou escrevendo. Ou isso, ou a vida realmente não é justa.

Essa introdução maluca, que parece sem pé nem cabeça tem muito a ver com o livro de Adriana Lisboa. David, o personagem central, que descobre ter poucos meses de vida, simplesmente não sabe o que fazer do tempo que lhe resta. Talvez por isso acabe, sem querer, mudando a vida de alguém que ainda tem muito tempo.

Ele começa um romance com uma descendente de vietnamitas chamada Alex, que trabalha num mercado. Ele mesmo é descendente de mexicanos e brasileiros e também tem o que costumamos chamar de uma profissão banal, trabalha em construções, sem nenhum traço de realização profissional.
Mas é justamente o modo de olhar para as banalidades da vida que fascina na história de Hanói. As pequenas e aparentemente indiferentes coisas nos unem muito mais que nossos grandes feitos.

Por mais importante que alguém seja, ele terá muito em comum com o resto da humanidade, terá medo, sono, fome e todos aqueles sentimentos que costumam nos reduzir a nossa eterna insignificância.

Os personagens de Adriana são invisíveis nas suas vidas sem graça, são iguais a milhares numa multidão. Porém, ao dar um close na vida de alguns desses seres, Adriana nos aconchega, acho que essa é palavra, na sua narrativa.
Estamos em casa quando percorremos as expectativas e frustrações de todos, as mesmas que achamos ser somente nossas.

É bom e reconfortante de repente estar em outras pessoas, nos ver em vidas distintas e tão similares. Viver a vida do outro sempre parece atraente, nem que seja só pela diferença.

Pensando dessa forma, o nosso personagem principal decide, pro seu final de vida, realizar o sonho da nova namorada, ir para Hanói, uma cidade onde nunca esteve, da qual não tem nenhuma referência, nem motivo algum pra querer estar lá.

Alex, a descendente de vietnamitas, ainda tenta dissuadi-lo, pela longa viagem, a língua incompreensível e absoluta ausência de atrativos que Hanói teria para ele, como se aquela cidade tivesse apenas um valor sentimental, impossível de ser calculado por alguém “de fora”.

Só que viver outra vida é tudo que David quer pra sua despedida do mundo, outros sentimentos, ser um pouco de alguém que ele não conhece, e a maneira de fazer isso é realizando o sonho dessa pessoa, imaginando que impacto isso poderia ter na sua realidade.

É claro que a verdadeira Hanói não existe, nem pra ele, nem para Alex, nem para ninguém, a verdadeira Hanói é uma ilusão de um lugar onde tudo estava certo, onde as banalidades eram importantes e a vida era perfeita.

Assim, não ir ao encontro dessa cidade é maneira de preservá-la da verdadeira cidade, de mantê-la no pedestal do paraíso. Para não estragar um sonho, precisamos ter o cuidado de não tentar transformá-lo em realidade.

Nisso parece consistir o sentido da vida que Hanói nos apresenta, na delicadeza de embalar ideais, cuidar deles com esmero, cultivar como se fossem delicadas plantas, acariciar como se fossem pequenos objetos de cristal, os quais um vento de realismo pode destruir em um segundo.


Não vou contar o final de Hanói, até porque, depois de tudo que eu já disse, é óbvio que Hanói não merece ter fim.

Tuesday, February 26, 2013

Barba ensopada de sangue - Daniel Galera

Sobre o quê: Depois do suicídio de seu pai e de saber das estranhas circunstâncias do fim do seu avô, um professor de educação física decide se mudar para a Garopaba a fim de investigar não só as razões da morte do antepassado, mas também as da sua própria vida. Como companhia, a cachorra que era do pai e uma incapacidade crônica de memorizar rostos.


Crítica: Já tinha ouvido falar em Daniel Galera. Sabia que era um autor novo, com um estilo diferente, que havia aparecido num romance chamado “Mãos de Cavalo”, muito embora a minha deficiente memória me impeça de lembrar se já o tinha lido ou não.

E foi nesse clima de ódio ao esquecimento que comecei a me identificar com o protagonista de “Barba ensopada de sangue”, um cara com um problema neurológico que o impede de guardar o rosto de alguém por mais de 15 minutos. Não tenho nada tão grave, mas experimente vir falar comigo depois de 15 meses...Além disso, o título e capa, que dá vontade de espremer pra sair sangue, prometem assassinar a monotonia com requintes de crueldade.

Acontece que “Barba ensopada de sangue” faz muito mais do que cumprir sua promessa e acaba por trazer revelações bem mais profundas do que faria um esperado suspense.

A narrativa segue um ritmo enérgico e, ao mesmo tempo, incrivelmente firme, sem atropelos, que confirma uma das críticas feita ao livro, a de que “o autor caminha decididamente e sem pressa, na certeza de chegar aonde quer”.

A prosa do autor impecável flui daquela maneira deliciosa que nos dá saudade do livro bem antes de terminá-lo. Sempre digo que existem histórias que nos fazem querer habitar nelas pra sempre. Essa, sem dúvida é uma delas.

No paradisíaco cenário de Garopaba, nosso protagonista ( que não tem nome e está em busca da verdadeira identidade) vive casos de amor, brigas, momentos de paz, alegria, desespero, mas vive principalmente o mistério que o traz ali: saber como morreu ou desapareceu o avô que era a cara dele, cara essa da qual ele mesmo não lembra e com a qual se espanta toda vez que encontra um espelho.

Em vários momentos, esperei que Daniel me decepcionasse e relatasse algo macabro estilo história de terror ou então se perdesse em uma das muitas fugas do seu personagem.

Porém a grande magia desse romance é nos conduzir com uma narrativa incólume e segura por um universo que parece não ter nada além de dúvidas, onde somente o autor detém impassivo o controle absoluto de um desfecho certo e inevitável.

Por que niguém admite que conheceu seu avô? Por que a cidade inteira finge sofrer de amnésia? Por que o protagonista não desiste? As respostas de tantas perguntas parecem estar na falta de sentido em geral da vida.

Sem se afastar da intensidade de sua busca, o professor de educação física esquecido se embrenha por fascinantes rotas filosóficas, investigando o destino, o livre arbítrio, a existência de Deus e o que mais você imaginar.

Portanto, pra quem espera somente um mistério, é bom avisar que o livro de Daniel Galera traz muitos mistérios. E o maior deles talvez seja sua própria perfeição.

Gisela Cesario